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“Erário Brasileiro”, de autoria de Superdotado Álaze
Gabriel.
Autoria:
Marcos
Otávio Bezerra. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
- IFCH-UFRGS.
RESUMO
Assumindo
como ponto de partida que a "política" constitui um universo
relacional onde o "local" e o "nacional" são planos sociais
nos quais certas relações se objetivam, e não esferas autônomas compreensíveis
em si mesmas, este artigo procura demonstrar que se pode dar maior
inteligibilidade a certas práticas políticas se não se fica preso a um dos
pólos, e aos pressupostos que lhe estão articulados, de oposições como esta
entre o local e o nacional. Para isso toma as etapas de elaboração e execução
da Lei Orçamentária Anual da União como um momento privilegiado do exercício da
política que permite examinar algumas das relações e concepções que vinculam os
profissionais da política situados nos distintos espaços de autoridade política
(municipal e nacional). Na análise sigo duas linhas de argumentação: 1) Que os
interesses em torno dos recursos federais e as práticas e concepções a eles
associados inscrevem-se num sistema complexo de relações de dependências mútuas
e assimétricas, constituído, entre outros, por lideranças municipais,
parlamentares, autoridades governamentais e agentes privados; e, 2) Que a
atuação destes distintos agentes remete a uma concepção específica da
representação política.
Palavras-chave:
antropologia política, política e relações pessoais, recursos públicos,
representação política.
INTRODUÇÃO
Ao
lermos os principais órgãos de imprensa do país não é difícil depararmo-nos com
matérias descrevendo o interesse de parlamentares na obtenção de recursos
federais. Notícias dessa natureza são comuns sobretudo no período de elaboração
e votação do orçamento da União no Congresso Nacional, quando são feitas
menções às inclusões de emendas de parlamentares que destinam recursos para
localidades a que estão politicamente vinculados, e nas votações de medidas de
interesse do governo no Legislativo, quando a promessa e a liberação de
recursos federais de acordo com o interesse de parlamentares é descrita como um
meio de se assegurar uma maioria favorável ao governo. De modo geral, essas
práticas são rotuladas como "clientelistas" e
"fisiológicas" por analistas políticos e principais órgãos de
imprensa nacional. Entretanto, quando se considera essa atuação dos parlamentares
da perspectiva dos pequenos municípios, constata-se não só que são mobilizados
diversos artifícios para divulgar o mais amplamente possível o nome do
responsável pelos benefícios logrados como o esforço para sua obtenção é alvo
de elogios e reconhecimento por parte da população. A diferença no significado
atribuído a essa forma de atuação - percebido mais claramente, mas não
exclusivamente, quando se faz o ponto de vista analítico se deslocar pelos
distintos espaços sociais de autoridade política (nacional, estadual e
municipal) - remete a concepções distintas e concorrentes da representação
política que não podem, sob o risco de se aceitar uma dicotomia que parece
fazer muito mais sentido para os agentes sociais do que analiticamente, ser
explicadas simplesmente em termos da oposição entre o que se concebe como sendo
a política nacional ("programática") e local
("clientelista").
A
partir do exame da atuação de políticos situados em diferentes espaços de
autoridade política com vistas a terem acesso aos recursos públicos federais,
este artigo procura demonstrar que se pode dar maior inteligibilidade a certas
práticas políticas se não se fica preso a um dos pólos e aos pressupostos que
lhe estão articulados, de oposições como esta entre o local e o nacional1.
Trata-se, sobretudo, de resgatar o valor explicativo, exemplarmente explorado
por Leal (1975), das múltiplas relações estabelecidas entre políticos que
desempenham funções nas instituições públicas nacionais e municipais. O foco
nesse conjunto de relações, concepções e sentimentos que lhes estão associados
parece-me um elemento chave para o entendimento de diversos aspectos da
organização política: concepções de representação política, processo eleitoral,
mobilidade dos políticos por partidos e facções, acusações de traição,
declarações de lealdade, disputas por cargos e corrupção, entre outros.
A
atuação de deputados, senadores e autoridades governamentais com vistas à
obtenção de recursos para as localidades a que estão politicamente vinculados
(as "bases") e a mobilização por parte de vereadores e prefeitos dos
vínculos com políticos situados no plano federal para se ter acesso a esses
recursos constituem itens do feixe de relações que ligam os profissionais da
política fora do período eleitoral ("tempo da política")2.
Se as relações entre os políticos são indubitavelmente mais amplas do que
aquelas que envolvem os recursos públicos, neste momento limito-me a focalizar
essas relações. Cabe observar, ademais, que essa atuação de parlamentares e
prefeitos escapa às definições oficiais, que têm no Estado o seu principal
divulgador, a respeito das atribuições políticas e administrativas desses
profissionais. Por conseguinte, é somente sob a condição de se assumir um ponto
de vista não institucional a respeito da atuação de prefeitos e parlamentares
que se pode trazer à luz relações, práticas e concepções instituídas em torno
de seus interesses pela obtenção de recursos públicos3.
Assim, sugiro que ao se dirigir o foco da análise para essa forma específica,
mas não exclusiva, de atuação de políticos, é possível revelar e tornar
compreensível certas forças sociais presentes no universo político que vinculam
estes profissionais entre si e a outros agentes sociais (como funcionários e
empresas privadas). Ressalte-se, porém, que se as expectativas existentes em
relação à obtenção dos recursos públicos podem ser identificadas entre
políticos de diferentes estados e filiações partidárias, as posturas e as
respostas dadas por cada um deles a essas exigências, socialmente instituídas,
não são idênticas, visto que parlamentares, prefeitos e demais agentes estão
longe de constituírem uma categoria homogênea.
A
destinação de benefícios públicos (recursos, cargos, serviços e outros) por
parte de políticos para lideranças e moradores das localidades que representam
é uma das principais questões examinadas pela literatura a respeito do
clientelismo político4.
Estas análises têm se centrado na idéia de que o clientelismo implica troca de
benefícios públicos por apoio político e votos. Cabe observar, no entanto, que
se o cálculo político-eleitoral é um dos elementos desta relação ele, porém,
não é o único. A ênfase neste aspecto tem impedido de se perceber, por exemplo,
que a troca de benefícios e apoio constitui um momento de uma relação mais
ampla entre as pessoas envolvidas e institui obrigações morais que se estendem
no tempo. Além disso, as mediações necessárias para que os benefícios e votos
sejam obtidos e as práticas que se interpõem entre estes atos - como as que são
responsáveis pela demonstração de interesse na continuidade da relação
(correspondências, pequenos favores, visitas, etc.) - não chegam a ser
examinados. Quando se incorporam esses elementos à análise, resulta, entre
outros aspectos, que as trocas de benefícios por votos tornam-se muito menos
mecânicas, isto é, deixam de ser uma troca do tipo toma lá dá cá. A incerteza
existente quanto à retribuição pelos favores e serviços prestados, um dos
elementos estruturantes dessas relações, torna-se algo muito mais evidente.
Assim, ao se centrar a atenção na troca de benefícios públicos por apoio e
voto, ignora-se que a mesma ocorre num contexto complexo onde estão em jogo
também a busca de prestígio, poder e o cumprimento de obrigações formais e
morais.
Na
análise apresentada a seguir, argumento que: 1) A atuação dos parlamentares e
prefeitos orientada para a obtenção de recursos federais inscreve-se num
sistema complexo de relações de dependências mútuas e assimétricas,
constituído, entre outros, por autoridades municipais, federais e agentes
privados. A extensão e a força destas relações e das concepções que acionam
decorrem, em grande medida, dos distintos interesses que mobilizam; 2) essa
forma de atuação dos políticos remete a uma concepção específica da
representação política que se afasta das formulações mais clássicas dos
filósofos políticos liberais. Ademais, o fato desta atuação estar associada a
uma concepção da política partilhada pelos próprios políticos coloca limites
para que a mesma seja descrita segundo o modelo clássico do clientelismo; 3) a
transferência de recursos federais para os governos municipais e os casos de
corrupção que envolvem permitem perceber como o entendimento de certos
fenômenos políticos exige a análise de relações e concepções presentes
simultaneamente em diferentes espaços de autoridade política (como o municipal
e o nacional).
A
importância do orçamento anual da União na definição da alocação dos recursos
públicos, os interesses em jogo no orçamento e as denúncias envolvendo a
alocação e aplicação destes recursos, entre outros aspectos, nos leva a tomar a
sua elaboração e execução como um lugar privilegiado (no sentido sociológico)
para se pensar no modo como o interesse em torno dos recursos públicos
estruturam certas práticas e concepções políticas. Dito de outro modo, o
processo de elaboração e execução do orçamento é um momento, as disputas
eleitorais e as reformas ministeriais são outros, do exercício político no qual
se pode visualizar o significado das relações e concepções que vinculam os
profissionais da política às práticas políticas.
A
seguir, examino alguns aspectos relativos à atuação dos parlamentares na
elaboração do orçamento para, em seguida, descrever a dinâmica das relações dos
parlamentares com os políticos locais e autoridades do Executivo5.
OS
INTERESSES LOCAIS NA ELABORAÇÃO DO ORÇAMENTO DA UNIÃO
Com
a vigência da Constituição de 1988, três instrumentos passam a regular o
processo de planejamento e alocação dos recursos federais: o Plano Plurianual
(PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual
(LOA); que correspondem ao orçamento anual e onde se concentrará nossa atenção.
Elaborados em momentos distintos, esses três instrumentos são, primeiramente,
objeto de discussão nos órgãos do Executivo através de etapas coordenadas pelo
Ministério do Planejamento e Orçamento. Em seguida, as propostas do executivo
para o PPA, a LDO e a LOA são remetidas pelo presidente da República ao
Congresso Nacional6.
Na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMPOF), única
Comissão estabelecida constitucionalmente e a que reúne o maior número de
membros (63 deputados e 21 senadores), as propostas são analisadas, modificadas
e votadas. Aprovadas pelo plenário do Congresso, elas retornam ao presidente da
República para que sejam sancionadas, o que é feito com ou sem vetos. Como a
Lei Orçamentária tem sido interpretada como tendo caráter apenas autorizativo,
deve-se observar que a decisão final a respeito da liberação dos recursos cabe
em última instância ao Poder Executivo.
A
Constituição de 1988 restitui a prerrogativa dos parlamentares de intervirem na
elaboração do orçamento, da qual o Poder Legislativo havia sido excluído
durante os governos militares7.
Os recursos federais passíveis de serem transferidos para os municípios -
excluídas as transferências obrigatórias que são definidas constitucionalmente
- são aqueles incluídos na rubrica destinada aos "investimentos". Nos
últimos anos, essa parcela tem variado em torno de 1,5% do total dos recursos
orçamentários. De modo geral, o acesso dos governos estaduais e municipais a
esses recursos ocorre por dois caminhos. Primeiro, via programas desenvolvidos
pelos ministérios através da utilização das designadas "dotações
globais", isto é, recursos cuja aplicação é definida pelo ministro da
pasta. Segundo, via emendas orçamentárias dos parlamentares.
A
apresentação de emendas à LOA, cujo número e valor total tem variado ao longo
dos anos, constitui para o parlamentar o caminho institucional através do qual
busca atender aos pedidos de verba. Este é um momento estratégico para as
relações do parlamentar, uma vez que suas decisões repercutem diretamente em
sua rede de relações políticas e nos interesses econômicos das empresas
empenhadas na realização de obras públicas a serem contratadas pelos órgãos
federais, estaduais e municipais. Para as lideranças municipais, a destinação
de recursos, além de assegurar a realização de um investimento, é uma espécie
de reconhecimento pelos deputados e senadores de seu compromisso político com o
município. Assim, a apresentação das emendas acaba operando como uma forma de
estabelecimento e reconhecimento da existência de uma hierarquia entre os
municípios em termos das preferências parlamentares. Para as empresas, as
emendas parlamentares constituem um valioso instrumento de movimentação dos
recursos alocados pelo Executivo nos órgãos e rubricas orçamentárias. A
articulação com os parlamentares no momento de elaboração do orçamento é um
meio de assegurar, incluir ou ampliar os recursos destinados à realização de
obras em andamento ou a serem iniciadas. Registre-se, porém, que em muitos
casos os interesses das lideranças municipais e empresariais são encaminhados
de modo articulado. À capacidade do parlamentar de aprovar e, posteriormente,
liberar os recursos estão associadas, por exemplo, sua reputação, chances
eleitorais e obtenção de fundos para o financiamento de campanhas eleitorais.
Quando
se examina a intervenção dos parlamentares nas diversas etapas de elaboração do
orçamento, observa-se que, em termos gerais, prevalece a preocupação dos mesmos
com a destinação de recursos para os municípios e regiões aos quais estão
politicamente vinculados. A importância que possui para os parlamentares a
obtenção de recursos para as localidades que representam pode ser percebida a
partir de vários mecanismos que têm sido mobilizados. Após a Constituição de
1988, os parlamentares apresentavam, como parte da proposta orçamentária, um
anexo, designado "subvenções sociais", onde cada parlamentar, se
assim desejasse, podia, dentro de um limite, destinar recursos segundo seus
interesses. Em 1994, a
destinação de subvenções foi suspensa após uma Comissão Parlamentar de
Inquérito sobre a elaboração e execução do orçamento da União (CPI do
orçamento) desvendar diversas irregularidades e desvios relacionados à
aplicação desses recursos. A partir deste mesmo ano, com a justificativa de
minimizar as disputas no interior da Comissão de Orçamento e as disparidades na
aprovação individual de recursos, a Comissão estabeleceu, informalmente, que
todo parlamentar teria assegurado uma "cota" (de cerca de um milhão e
meio de reais)8
para destinar conforme suas preferências. Essa decisão não foi, no entanto,
suficiente para conter a busca de recursos. As emendas das bancadas estaduais,
em número de 10, e geralmente negociadas com os governadores, passaram a ser
aprovadas com a condição de que algumas dessas emendas fossem aplicadas pelo
governador em locais e obras indicadas pelos parlamentares. O mesmo tipo de
negociação envolve as emendas "globais" dos ministérios. São as
chamadas "rachadinhas". Neste caso, são aprovadas desde que uma parte
dos recursos seja aplicada segundo o interesse dos parlamentares que a
apoiaram. Além de mostrar a força desse interesse dos parlamentares em aprovar
emendas específicas para as localidades a que estão vinculados politicamente,
essas ações apontam ainda para o modo como os mecanismos sociais, implementados
para o atendimento de certos interesses, se atualizam e renovam. Acresce-se
também que esses são exemplos de como esses interesses se articulam com os
dispositivos governamentais e vão ganhando um contorno oficial.
Do
ponto de vista legal, nada impede que o parlamentar, através de suas emendas
individuais, destine recursos para estados ou municípios pelos quais ele não
foi eleito, intervindo na área de um concorrente. Essa, no entanto, é uma
prática pouco comum. Quando isso ocorre e é levado ao conhecimento público, o
parlamentar é freqüentemente alvo de suspeitas ou acusações por parte de seus
pares e da imprensa. Suspeita de corrupção por estar favorecendo empresas que
realizam obras em outros estados ou acusações de opositores e aliados de estar
destinando recursos federais para outras regiões, em detrimento do próprio
estado e municípios pelo qual o parlamentar é eleito. As denúncias dirigidas
aos parlamentares que beneficiam outros estados acabam operando como uma
espécie de coerção a mais que faz com que deputados e senadores elaborem suas
emendas de modo a que atendam aos interesses ligados aos estados e municípios
pelos quais se elegem.
As
chances de aprovação de recursos além do estabelecido pela "cota"
variam, sobretudo, em função das relações de poder dos parlamentares no
Congresso e no Executivo. Entre outros aspectos, a posição institucional
ocupada no Congresso e na CMPOF e as estratégias mobilizadas pelos
parlamentares definem as possibilidades de aprovação das emendas. Nesse
sentido, a pressão dos parlamentares sobre os relatores da Comissão é um
elemento essencial no processo de alocação dos recursos que passam a constar no
projeto de lei.
Do
ponto de vista da liberação dos recursos, o que será discutido adiante, cabe
observar que a pressão dos parlamentares, sobretudo das lideranças partidárias
na Comissão, é dirigida para que os ministérios geridos por representantes de
seus respectivos partidos sejam contemplados com recursos suficientes para suas
ações. Ter esta conexão em mente é importante para se entender a atuação dos
parlamentares no sentido da liberação de recursos nos ministérios.
Coexistem
na elaboração do orçamento, portanto, várias formas de disputas. Entre outras,
pode-se destacar as disputas pela destinação de recursos para estados e
regiões, pela aprovação das emendas individuais dos parlamentares e pela
alocação de recursos nos ministérios. Por conseguinte, olhando da perspectiva
do orçamento e da natureza da intervenção parlamentar, o governo federal
aparece recortado por distintos e concorrentes interesses locais, partidários e
empresariais. Enfim, esta forma de atuação dos parlamentares pode ser vista
como um exemplo do modo como a "redistribuição burocrática"
sujeita-se às apropriações pessoais e clientelistas (Bourdieu, 1996, p. 16).
A
INTERDEPENDÊNCIA ENTRE PARLAMENTARES E LIDERANÇAS POLÍTICAS LOCAIS
A
obtenção de recursos e benefícios para as localidades que representam é
considerada pelas lideranças locais como uma das atribuições essenciais dos
parlamentares. Como informa o secretário de saúde de um município do interior
do Estado do Rio: "[O parlamentar] também foi eleito dentro daquela
retórica de que o deputado federal do interior tem que trazer recursos".
Se ao longo das disputas eleitorais municipais os candidatos a prefeitos e
vereadores contam sobretudo com o apoio financeiro e a presença nas atividades
de campanha dos representantes estaduais e federais, fora dos períodos
eleitorais, de modo geral, os prefeitos esperam dos parlamentares que estes
realizem pequenos favores, encaminhem seus interesses junto à burocracia
governamental e, principalmente, obtenham verbas federais para a realização de
investimentos nos municípios. Alguns parlamentares, por sua vez, consideram que
a obtenção dos recursos, senão formalmente ao menos de fato, é um de seus
"deveres" funcionais. Nesse sentido, em 1988, em uma entrevista à
imprensa, o então senador Marco Maciel observava que "a luta política por
mais verbas para os estados é uma função inerente ao parlamentar" (jornal Folha
de São Paulo, 07/02/98). Alguns anos depois, em depoimento à CPI do
Orçamento, o deputado Genebaldo Correia (PMDB-BA), um dos investigados,
partilha da mesma idéia ao afirmar: "Considero que é um dever do
parlamentar lutar bravamente para conseguir a maior soma de recursos possíveis
para o seu estado ou para a sua região" (CPMI do Orçamento,
Genebaldo Correia, 19/11/93, p. 6).
Compreende-se
melhor o interesse dos políticos em torno da obtenção das verbas federais
quando se considera o valor que é atribuído, por eles e pela população, à
realização de obras públicas. Investir na promoção de benefícios coletivos
(festas, obras públicas, etc.) tem sido historicamente uma forma de acúmulo de
prestígio político9.
Entre outros autores, Victor N. Leal chamou a atenção para essa relação ao
destacar que é através de realizações de "utilidade pública" que o
"chefe municipal constrói ou conserva sua posição de liderança" ou,
ainda, que "nenhum administrador municipal poderia manter por muito tempo
a liderança sem realizar qualquer benefício para sua comuna" (1975, p. 37,
45). O vínculo estreito existente entre o exercício da política ("fazer
política") e a realização de obras é ressaltado por M. Palmeira ao sugerir
que "as obras são a face pública da política" (2000). Às obras
públicas estão associadas, portanto, a reputação do político e a uma concepção
específica sobre a política.
É
interessante observar como as obras públicas incorporam e expressam certas
propriedades que se poderia considerar como opostas. Por um lado,
diferentemente dos favores e serviços pessoais, as obras públicas produzem
benefícios coletivos. Ao atenderem a interesses de uma multiplicidade de
pessoas elas estão mais de acordo com as exigências de uma aplicação
democrática dos recursos públicos. Por outro lado, quando se acompanha o
processo de realização e divulgação de uma grande parte dessas obras percebe-se
que há todo um esforço de singularização dirigido para associá-las a uma certa
administração e grupo político. Ao invés de serem apresentadas como um ato
impessoal do poder público, uma espécie de retorno dos impostos pagos, as obras
são apresentadas como benefícios proporcionados por políticos em particular. A
divulgação em diversas ocasiões dos responsáveis pela obtenção dos recursos que
as tornaram possíveis, as faixas anunciando seus nomes, a presença nas
inaugurações, as menções nos comícios e as placas comemorativas são exemplos de
mecanismos sociais mobilizados para vincular as obras a iniciativas
individuais. Assim, se as obras atendem a demandas mais gerais, elas não deixam
de serem associadas, o que remete a uma espécie de variante da "patronagem
pública", à eficácia da atuação de certos grupos políticos.
O
lugar central atribuído às obras no contexto da política, mais evidente durante
as campanhas eleitorais, quando as realizações ganham o centro da propaganda de
candidatos, ajuda a entender ainda como se dá a articulação de empresas
privadas de construção com o universo político e através de que atividades elas
se fazem presentes nos órgãos públicos municipais, estaduais e federais.
Parte
da força do parlamentar em relação aos prefeitos reside na possibilidade que o
primeiro possui de viabilizar o acesso destes últimos às autoridades
governamentais. Para alguns, os parlamentares são concebidos como um
"elo" de ligação com os governos estadual e federal. Nestes termos,
manifestou-se, em 1996, um candidato a prefeito: "nenhum político do
interior tem sucesso se não encontrar um elo de ligação que o leve pelo caminho
das pedras quando tiver que atravessar um rio" (jornal Voz da Serra,
27/05/96). O vínculo com parlamentares e autoridades governamentais é visto como
essencial para se lidar com as dificuldades burocráticas e políticas do
governo, ao que está associado, por sua vez, a possibilidade de realização de
uma boa administração municipal. Para o prefeito, o acesso aos ministros é ao
mesmo tempo um indicador de seu prestígio e do prestígio do parlamentar que
propiciou a audiência, ou seja, uma demonstração - para a população e seus
concorrentes - de seu poder político e pessoal. É uma demonstração, em último
caso, da força e eficácia de suas ligações10.
As
solicitações de verbas dirigidas aos parlamentares são geralmente designadas
como "pleitos". Para encaminhar seus "pleitos", os
prefeitos procuram, preferencialmente, os parlamentares tidos como mais
comprometidos com os municípios: "deputados amigos", "deputados
que têm contato", deputados com "compromisso maior, um maior número
de votos do município", "deputados que foram eleitos aqui com a
participação do nosso município". Se é junto a esses que os prefeitos têm
maior força, devido aos laços do parlamentar com as redes políticas locais e a
votação, é comum, no entanto, os pedidos serem encaminhados a mais de um
parlamentar - distintamente das situações clássicas descritas pela literatura
sobre patronagem e clientelismo nas quais é ressaltada a relação de
exclusividade entre patrão e cliente.
Na
busca de contatos que possam viabilizar a obtenção de recursos, os vínculos
partidários, distintamente do que ocorre com os laços políticos decorrentes da
atuação política num mesmo estado, são apresentados como tendo um peso
relativo; por conseguinte, não constituem um limite rígido para o
estabelecimento de contatos entre políticos situados nos diferentes planos do
universo político. O critério predominante na seleção dos parlamentares é o
vínculo político com o município e a região, o que se manifesta principalmente
através das votações obtidas nas localidades. Observa-se assim que a atuação
política num estado, no caso em que está em jogo a obtenção de recursos
públicos, circunscreve, de modo geral, o âmbito no interior do qual são
estabelecidos os laços entre os políticos. Dentro deste limite, verifica-se que
os vínculos com a localidade, objetivados na forma de compromissos de troca de
apoios e serviços, e as relações pessoais mesclam-se com as relações
partidárias. Assim, não é raro encontrarmos lideranças políticas trocando apoio
e serviços mútuos a despeito de seus distintos vínculos partidários.
Esse
tipo de procedimento, que sugere um certo enfraquecimento dos vínculos
partidários, deve, contudo, ser interpretado com um certo cuidado. A concessão
de apoio por parte dos políticos situados nas instâncias estaduais e federais
às demandas das lideranças municipais pode ser condicionada a seu ingresso no
partido daquele a quem se recorre; o que é uma evidência no sentido do
reconhecimento e da eficácia que possuem em certas circunstâncias os vínculos
partidários11.
A
relação entre os vínculos políticos com um município e região e a busca de
recursos para estas localidades pode ser verificada a partir de alguns dados
reunidos a respeito de dois municípios do interior do Estado do Rio. Os
municípios de Graciliano e Guimarães12
distam cerca de 160
quilômetros da cidade do Rio de Janeiro. Possuem,
aproximada e respectivamente, 21.500 e 8.400 habitantes e 11.700 e,
curiosamente, 8.000 eleitores.
Ao
se consultar a proposta de lei orçamentária da União de 1996, observa-se que os
municípios de Graciliano e Guimarães são contemplados com emendas
orçamentárias. Para o primeiro são elaboradas três emendas. No entanto, somente
a emenda intitulada Assistência Técnica e Extensão Rural, no valor de R$ 100
mil, foi efetivamente liberada. As três emendas foram apresentadas por um mesmo
deputado. Para o município de Guimarães foram elaboradas quatro emendas,
apresentadas por diferentes parlamentares. Três possuíam o mesmo título:
Construção e Equipamento de Hospital. As emendas tinham os valores de R$ 150
mil, R$ 300 mil e R$ 1 milhão. Quanto a esta última, a única efetivamente
liberada, não há referências no projeto de lei orçamentária sobre seu autor, o
que pode ser tomado como um indicador de que o recurso tenha sido alocado
através de uma emenda de relator ou de bancada, devido, em ambos os casos, à
interferência de um influente parlamentar.
Se
acompanharmos na tabela abaixo a votação que tiveram na eleição de 1998 os
parlamentares com participação na liberação de recursos para os municípios
mencionados verificamos que estes possuem votação expressiva nos mesmos.
O
deputado X é presidente de seu partido no Estado e possui há longo tempo uma
forte influência junto aos políticos da região. Na disputa eleitoral deste ano
ele contou com o apoio dos prefeitos e dos políticos a ele vinculados nos dois
municípios. Foi por interferência política deste parlamentar, segundo o
secretário de saúde de Guimarães na época, que o município, onde sua votação
sobressai, obteve o recurso de R$ 1 milhão para a construção do hospital.
O
deputado K, responsável pelas emendas para o município de Graciliano, nasceu
num distrito do município, recentemente emancipado. Nele sua família possui
propriedades agrícolas e desenvolve atividades comerciais. Os interesses
econômicos da família na região, os vínculos mantidos com os políticos locais e
a boa votação obtida no município nas disputas eleitorais faz com que o
parlamentar seja considerado, por mais de um grupo político, como alguém da
"relação política do município". Na ocasião da apresentação das
emendas o vínculo mais estreito do parlamentar era com o grupo político
liderado por um ex-prefeito e ex-deputado estadual. Na eleições de 1998, mesmo
afastado de cargos públicos nos últimos dois anos, o ex-prefeito trabalhou,
realizando sobretudo visitas aos moradores e solicitando seu voto para o
candidato, em favor da campanha vitoriosa do deputado. A presença política dos
parlamentares K e X no município de Graciliano é uma evidência a mais de que a
boa relação de um parlamentar com políticos municipais não o torna um mediador
exclusivo do município junto ao governo federal.
Cabe
acrescentar, porém, que recorrer ao parlamentar a quem se deu apoio ou àquele
que foi mais votado no município nem sempre é o melhor caminho para se ter um
"pleito" atendido, uma vez que esse parlamentar pode defender
posições contrárias aos interesses do governo. O parlamentar com maior chance
de liberar recursos, cujas razões ficarão mais claras adiante, são os chamados
"governistas", isto é, aqueles que apóiam as iniciativas do governo,
independente de sua filiação aos partidos que o integram13.
Recorrer
aos chamados "escritórios de consultoria" e às empresas privadas
(sobretudo as empreiteiras), ao lado da mobilização dos parlamentares, tem sido
uma das alternativas através das quais políticos municipais, estaduais e
nacionais buscam ter acesso aos recursos federais. Os "parlamentares
fortes" - que em certa medida se confundem com os "governistas"
com alguma influência maior, devido a posição institucional ou a liderança
política, junto aos órgãos governamentais - e os "lobistas" - como
são designados também os responsáveis por esses escritórios - são considerados
pelos políticos como as pessoas que se encontram em melhores condições para
lidar com o que descrevem como a complexidade dos ministérios. A burocracia,
distância, desinformação sobre o funcionamento dos órgãos públicos e a
dificuldade dos municípios para atender às exigências oficiais (apresentar
documentos, preparar projetos técnicos, etc.) e "acompanhar" os
processos são motivos apresentados tanto pelos políticos quanto pelos
proprietários desses "escritórios" para justificar sua contratação.
Referindo-se aos órgãos ministeriais, um ex-secretário municipal informa:
"Aquilo [o ministério] ali dentro é complicado. Se um determinado grupo de
deputados indica um secretário, um ministro, um primeiro e segundo escalão, de uma
maneira geral eles controlam o dinheiro que aquele ministério tem. Isso
realmente é complicado. Aí você tem que apelar para tudo que você puder para
poder arrancar o dinheiro". A dificuldade em se trabalhar com os órgãos
ministeriais decorre tanto da falta de conhecimento necessário para atender às
exigências formais (prazos, preenchimento de formulários, atendimento de
exigências técnicas, etc.) quanto da necessidade de fazer com seus interesses
sejam implementados pelos grupos políticos que controlam os órgãos. É devido ao
conhecimento e acesso que possuem aos órgãos e grupos administrativos e
políticos que "lobistas", empresas e parlamentares apresentam-se como
recursos sociais importantes para os administradores.
Apesar
da mobilização destes agentes aparecer como alternativa, a articulação entre
eles é freqüente. A experiência de um ex-secretário de obras leva-o a afirmar
que "nenhuma empresa de projetos especializada em arrancar verba de
ministério se cria se não tiver por trás dela um parlamentar, não é qualquer
um, um parlamentar forte. E alguns gabinetes que eu fui, dentro do próprio
gabinete do deputado o cara te dá a dica: 'Olha, tem um cara aí que está
arrancando o dinheiro. Ele é um cara bem relacionado. Eu se fosse você
procurava ele. Porque ele vai acompanhar o seu processo". A empresa
indicada nesse caso era ligada ao parlamentar, não legalmente, mas de fato tido
como um dos sócios, e conhecida por realizar obras na região com recursos
obtidos através de sua intervenção.
Do
ponto de vista da empresa, a ligação com o parlamentar é estratégica uma vez
que este não só possui os contatos com os políticos municipais como encontra-se
em condições de negociar os interesses destes junto aos órgãos governamentais.
Se esta associação está na base da criação de oportunidades econômicas para a
empresa, é através da sua atuação que são criadas igualmente as oportunidades
para apropriação irregular dos recursos liberados. Nota-se ainda que a
indicação da empresa justifica-se por duas razões: primeiro, o fato de que a
pessoa indicada era bem "relacionada"14,
o que é tido como um capital social importante para assegurar o acesso aos
recursos e, segundo, que a empresa cuidaria do "acompanhamento" do
processo nos órgãos governamentais. Os recursos repassados através destes
acordos chegam a ser tidos como um problema administrativo e legal para as
prefeituras uma vez que, em muitos casos, cabe às mesmas encontrar os meios
para justificar as despesas que efetivamente não são efetuadas15.
O
que chama atenção quando se considera a atuação dos escritórios, empresas
privadas e parlamentares na liberação dos recursos públicos é, entre outros
aspectos, a adequação de suas ações aos canais e relações políticas que
condicionam a liberação destes recursos. Assim, os parlamentares, escritórios e
empresas não atuam a partir de um "sistema" que se poderia conceber
como paralelo aos canais oficiais, mas através de relações e práticas políticas
consideradas por prefeitos, governadores, parlamentares e autoridades
governamentais como rotineiras16.
Para
além do interesse pecuniário, a participação dos parlamentares na liberação dos
recursos federais torna-se inteligível quando se considera os motivos tidos
propriamente como políticos que os levam a atender os "pleitos" das
lideranças municipais. Parte ao menos desses motivos são explicitados quando se
focaliza as relações de interdependência estabelecidas entre políticos situados
nas instâncias municipais e nacionais.
Se
os prefeitos dependem, em função dos procedimentos político-administrativos,
dos parlamentares para assegurar que seus interesses sejam tratados de modo
prioritário nos órgãos governamentais, a necessidade de contar com o apoio das
lideranças municipais coloca o parlamentar numa condição de dependência
relativa em relação a estes e dá aos prefeitos uma força frente ao parlamentar.
É através do apoio dos prefeitos e lideranças políticas que os parlamentares
montam e expandem suas redes políticas nos municípios. Para não remeter a mais
de um exemplo, observe-se o que diz um senador (PMDB-PB): "O município é a
base política de qualquer parlamentar, se o município não quiser atendê-lo toda
a estrutura política estará deficitária. Então, a gente tem que começar a ter o
apoio do prefeito e do município". Da perspectiva eleitoral, o apoio
político do prefeito e vereadores é essencial para uma parcela significativa
dos parlamentares17.
Para estes, o poder do prefeito resulta, entre outros aspectos, do controle
sobre a administração municipal e sua reputação no município. Apesar da
legislação assegurar ao parlamentar o direito de ser eleito em todo o Estado, o
que opera na prática, como tem sido apontado por alguns autores, é uma forma de
distritalização do voto.
Assim,
ao viabilizar o atendimento de um "pleito", o parlamentar, ao mesmo
tempo, investe na continuidade da relação e renova os compromissos políticos existentes.
Como informou-me o secretário de saúde de um município do interior do Estado do
Rio: "O prefeito apoia o deputado que arrumou mais verba, tranqüilo"18.
A atualização dos vínculos está associada à própria natureza do compromisso
estabelecido entre parlamentar e lideranças locais. O fato de estarem fundados
em torno de demandas "concretas" e não na "base de princípios
políticos", como ressalta Leal (1975) ao discutir o "compromisso
coronelista", torna esses vínculos frágeis e sujeito às oscilações em
torno da capacidade de prefeitos e parlamentares atenderem aos interesses
mútuos19.
Se a obtenção de recursos contribui para a consolidação dos laços, promessas
que não se concretizam ou a incapacidade dos políticos para obter os recursos
podem levar à sua dissolução. Isto faz com que estes laços precisem ser
continuamente renovados. A natureza destas relações, que parecem se manter numa
espécie de equilíbrio instável e, portanto, sujeita a rupturas eventuais,
associada ao fenômeno do governismo (Leal, 1975), ajuda a entender ainda a
mobilidade dos políticos pelas facções e partidos, isto é, o que de modo geral
tem sido discutido como o problema da fidelidade partidária.
É
nesse contexto de dívidas e créditos pessoais que se inscreve a relação dos
parlamentares com as lideranças políticas locais. E, ao contrário do que ocorre
com as questões legislativas, parlamentares e seus assessores crêem que é este
trabalho em torno dos pedidos que traz votos. Se é efetivamente esse trabalho o
responsável pela eleição ou não dos candidatos esta parece ser uma questão
menor diante da crença de que é isso efetivamente o que ocorre e das práticas
que essa crença desencadeia.
A
INTERDEPENDÊNCIA ENTRE PARLAMENTARES E GOVERNO
As
expectativas existentes em relação aos parlamentares como uma espécie de
mediador dos interesses estaduais e municipais junto ao governo faz com que
estes concentrem uma parte significativa de sua atuação nos órgãos executivos.
A intervenção nos órgãos é fundamental para que os favores sejam atendidos e os
recursos públicos liberados. Isto é feito, por um lado, através do serviço
designado como "acompanhamento" de processos, também realizado pelos
"escritórios de consultoria" e empresas privadas, que visa garantir o
trâmite dos processos e sua adequação às exigências oficiais, e, por outro, dos
"pedidos políticos" dos parlamentares. A realização destes pedidos é
considerada por parlamentares e autoridades governamentais como uma prática
rotineira e geral20.
Faz parte do que experimentam como a "luta" pela transferência de
recursos federais. Dispostos a obter os recursos, os parlamentares recorrem a
todos aqueles (autoridades, políticos e funcionários) que em função de suas
posições institucionais, vínculos sociais e prestígio podem de algum modo
contribuir para que isso se realize.
A
presença de parlamentares, prefeitos e lideranças políticas nos órgãos
ministeriais é descrita por técnicos e funcionários destes órgãos como voltada
para a busca de informações e o exercício de pressões que assegurem o
atendimento de seus "pleitos". As áreas dos órgãos mais procuradas
são aquelas responsáveis pela análise dos processos. O contato do parlamentar
com o técnico segue um certo padrão. Procura-se, por um lado,
"sensibilizar" o interlocutor em relação às "dificuldades"
por que passa o município ou a população a ser beneficiada pelo projeto e, por
outro, destacar a "necessidade e importância" que possui o projeto
para o público a ser atendido.
A
questão do acesso às instituições e pessoas como fonte de poder social é
abordada pela literatura voltada para a discussão das intermediações e
mediações sociais21.
Este acesso - sustentado por propriedades sociais distintas como status,
poder econômico e político, domínio da escrita e de regras de conduta e
contatos com pessoas que desempenham funções em órgãos públicos ou instituições
privadas - qualifica socialmente certas pessoas para o exercício da mediação.
Quando se reflete sobre a relação que mantêm as pessoas com o poder público, o
acesso às autoridades e funcionários é um elemento que diferencia o cidadão
comum do parlamentar. Notadamente quando se trata dos órgãos ministeriais, o
acesso aos ministros é algo quase impossível para os primeiros e mesmo para
pessoas que desempenham funções públicas, como os prefeitos. Esta dificuldade é
amenizada, contudo, se o contato é mediado pelo parlamentar. Como observa um
deputado (PFL-PE): "A diferença é mais no acesso, quer dizer, o cara quer
falar com o ministro, ele não consegue, se ele for com o parlamentar, ele
consegue. [...] Normalmente ele consegue colocar o pleito dele, aí se consegue
tem uma chance de resolver, mas se você não consegue não tem chance
nenhuma". Se o pedido pessoal ao ministro é o que aumenta efetivamente as
chances de um "pleito" ser atendido, isto acaba valorizando as
mediações que são realizadas para que o contato seja estabelecido. Logo, é
nessa possibilidade de fazer com que os "pleitos" recebam um
tratamento prioritário nos órgãos ministeriais que reside, ao menos em parte, a
força social do parlamentar junto à sua rede política.
O
efeito do "pedido" de um parlamentar - que varia em função de
aspectos como o prestígio de quem pede, sua relação com o ministro e o poder de
retaliação sobre o órgão - sobre o trâmite de um processo ou a liberação de
recursos reside na possibilidade de fazer com que estes sejam, em termos
nativos, "agilizados" e "priorizados" na burocracia
governamental. Estes aspectos (agilização e priorização) são considerados como
a "parte política do processo". Como sugeriu o então coordenador
geral de um órgão ministerial, chamando atenção para o que se concebe como o exercício
da política no cotidiano da administração pública, "isto é política".
Essa atuação dos deputados e senadores é reforçada pelos próprios órgãos
ministeriais na medida em que reconhecem, em parte devido aos seus próprios
interesses, que os mesmos devem ser ouvidos.
Se
o controle do governo sobre a execução orçamentária define parte de seu poder
em relação aos parlamentares, o posicionamento de deputados e senadores nas
diversas instâncias do Congresso atribui a este um poder relativo sobre o
governo. A negociação envolvendo os interesses de parlamentares e Executivo é
vista, tanto por pessoas posicionadas nos órgãos ministeriais quanto do
Legislativo, como uma "troca" percebida como "política" e
que se sustenta na interdependência institucional dos poderes.
Apenas
uma parcela dos pedidos encaminhados aos ministérios são atendidos. A
prioridade concedida ao atendimento dos "pleitos" dos deputados e
senadores governistas é um princípio de atuação que o governo procura, nem
sempre com sucesso, por em
prática. Isto é o que informa, por exemplo, um deputado
(PFL-PE): "Teoricamente é para ser o seguinte: os partidos que apóiam o
governo, eles deveriam ter mais facilidade em resolver as coisas". Esse
princípio de atuação do Poder Executivo e o efeito que isso produz em termos de
configuração política, ou seja, a aproximação das lideranças políticas dos
partidos ou grupos que têm o controle do Poder Executivo, é um fenômeno
descrito por autores que analisaram a história política do Brasil. Referindo-se
às relações entre os chefes políticos municipais e o governo estadual durante a
Primeira República, Leal (1975) designou como "governismo" o
movimento das lideranças políticas municipais no sentido de apoio à
"situação estadual". Assim como as nomeações para os cargos públicos,
a liberação de recursos federais segundo o critério de apoio ao governo,
constitui um benefício do qual desfrutam aqueles que o integram ou lhe concedem
o seu apoio. A aplicação desse critério funciona como instrumento político de
construção de maioria governamental (Ames, 1995).
Para
que o apoio seja assegurado e se tenha um controle sobre o mesmo, o Poder
Executivo mantém um sistema de informações sobre a atuação dos parlamentares
(votação, discursos, etc.) que opera como um instrumento de governo. Além das
medidas rotineiras de fiscalização da administração pública, os ministros
dispõem de relatórios atualizados a respeito do posicionamento dos
parlamentares em relação ao governo. A institucionalização desse controle dos
pedidos foi descrito por um ex-assistente-executivo do Ministro de Assuntos
Políticos da Presidência nos seguintes termos: "Notamos a ausência de um
mecanismo institucional capaz de controlar as demandas parlamentares [...]. No
começo não era raro ver vários parlamentares céticos com o Governo,
reivindicando benefícios em diferentes repartições e ministérios de modo a
atender seus eleitores. Decidimos então controlar esses pedidos e o seu
atendimento [...]. Com este sistema temos uma fotografia perfeita do que os
parlamentares pediram e em que medida o executivo os atendeu" (jornal O
Globo, 30/4/00, p. 4). Estas são informações que permitem que os ministros
e suas assessorias elaborem um mapa do comportamento dos parlamentares em
termos de apoio às iniciativas do governo e dos ministérios22.
Mais do que uma medida de controle administrativo, estes relatórios consistem
em um instrumento tido como político e podem ser interpretados como uma
tentativa de racionalização de práticas tidas comumente como clientelistas.
Em
vista disso, pode-se afirmar que a prática de atendimento dos
"pleitos" por parte dos parlamentares, por um lado, e a aproximação
destes últimos do governo, por outro, isto é, o que tem sido descrito em
termos, respectivamente, de clientelismo e governismo, são fenômenos sociais
que se articulam e se fomentam mutuamente.
Quando
se volta a atenção para a questão do acesso ao governo, percebe-se que os
vínculos partidários, as relações de amizade, os compromissos políticos e o
prestígio dos parlamentares são, entre outros, alguns dos fatores que intervêm
na priorização do atendimento dos "pleitos". Estes são elementos que
definem, por exemplo, as chances maiores ou menores dos parlamentares de terem
seus pedidos atendidos. Por efeito, as ações dos parlamentares e seus
resultados não serão idênticos no conjunto dos órgãos ministeriais23.
REPRESENTAÇÃO
POLÍTICA E INTERDEPENDÊNCIA ENTRE O LOCAL E O NACIONAL
Ao
centrar a análise nas relações de interdependência entre prefeitos,
parlamentares, autoridades governamentais e agentes privados procurei repensar
particularmente a separação freqüentemente estabelecida entre os distintos
planos de autoridade política (local, estadual e nacional), isto é, a idéia de
que aquilo que é tido como a política local e nacional constituem domínios
autônomos e explicáveis em si mesmo. A articulação desses planos evidencia-se,
por exemplo, no fato da definição de questões nacionais (como o valor do
salário mínimo e mudanças constitucionais) depender de negociações que envolvem
interesses locais dos parlamentares, na constatação de que práticas corruptas
envolvem a atuação de políticos, autoridades e empresas que agem
simultaneamente em instâncias municipais e nacionais da administração pública e
na referência a concepções comuns sobre a representação política por políticos
situados nas distintas instâncias de autoridade política.
Fator
essencial para o estabelecimento e manutenção das relações entre esses
políticos é o fato de suas relações serem concebidas em termos de
reciprocidade. A troca de favores, serviços e os esforços efetuados para a
obtenção de recursos federais é algo que não escapa às análises sobre a
política no Brasil (Graham, 1997; Leal, 1975; Palmeira, 2000). Ressalte-se, no
entanto, que se esses elementos são destacados quando se analisa a
"política local", eles não têm sido incorporados às análises
efetuadas sobre a "grande política" e as relações estabelecidas entre
os políticos situados nas diferentes instâncias. Dito de outro modo, os
favores, serviços e as relações nas quais eles se sustentam e são constituídos,
não são tratados como elementos significativos da política realizada a partir
das instituições nacionais. Todavia, o lugar dos compromissos criados e
mantidos através das trocas de favores, serviços, apoio político e recursos nas
instituições e nas práticas implementadas por políticos que desempenham funções
nacionais pode ser percebido quando se tem em mente as medidas e decisões
administrativas e governamentais que assentam nessas trocas, como as votações
no Congresso e a definição da aplicação dos recursos federais.
O
exame do conjunto de relações e práticas produzidas a partir da atuação dos
políticos no sentido de obterem recursos para as localidades a que estão
vinculados politicamente faz emergir uma concepção específica da representação
política que se destaca pelo fato de estar assentada em laços de dominação
pessoal e se centrar em idéias como a necessidade de se obter benefícios
(especialmente verbas) para as localidades que representam e encaminhar os
interesses dos membros de sua rede política junto aos órgãos governamentais.
Ressalte-se
que para os parlamentares, lideranças políticas estaduais e municipais e
autoridades administrativas e políticas não está em jogo no atendimento dos
"pleitos" apenas a formação de "clientelas eleitorais",
como enfatiza a literatura sobre clientelismo político. Ao reduzir essas
relações à questão da obtenção do voto, a noção de clientelismo deixa de fora
sobretudo a idéia de que nessa forma de atuação dos políticos está em jogo uma
concepção sobre o atuar político. Evidência nesse sentido é a crença partilhada
por diferentes agentes de que constitui um "dever" do parlamentar
obter os recursos para as localidades que representam24.
Trata-se de uma expectativa associada à própria atividade parlamentar, isto é,
relativa ao cargo e suas atribuições. Nesse sentido, a capacidade do
parlamentar de assegurar esses recursos opera, inclusive, como um critério de
avaliação de sua eficácia e poder. Dito de outro modo, o poder do parlamentar
estaria fundado no reconhecimento pelas lideranças e população de sua
capacidade e força para atuar em um outro plano de relações e assegurar certos
benefícios e favores para as localidades e seus habitantes. Tem-se, por
conseguinte, uma outra imagem dos deputados e senadores. Estes não surgem
somente como porta-vozes de diferentes pontos de vista e interesses presentes
na sociedade, elaboradores de leis ou fiscalizadores do Poder Executivo, mas
também como mediadores de demandas locais e interesses relacionados às suas
redes políticas. Esta forma de atuação de deputados e senadores aponta, desse
modo, para uma das possibilidades histórico-culturais25
de como a instituição da representação política se realiza em termos práticos.
Uma mudança nestas condutas, por conseguinte, pressupõe mudanças nas condições
sociais que dão vida a essas práticas e concepções. No contexto destas relações
e concepções, a liberação de recursos federais pode, enfim, ser interpretada
como uma espécie de necessidade estrutural que, no entanto, é apresentada pelos
políticos como uma virtude.
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Votação
dos candidatos nos municípios - 1998
NOTAS TÉCNICAS:
1
Esta distinção entre o "local" e o "nacional" foi
questionada por Bailey (1971) ao sugerir que os mesmos recursos políticos -
como o jogo de reputações, o acionamento das lealdades primordiais e a troca de
favores - são mobilizados tanto nas "pequenas comunidades" quanto nas
instituições formais da política oficial. A problematização desses limites foi
desenvolvida por M. Palmeira ao sugerir, inspirado em Bailey, que assim como a
"pequena comunidade" é recortada ("é invadida") pela "política
oficial", esta última, ou seja, a política institucional (a "grande
política") reserva espaços (é "invadida") para a "pequena
política" (a "política das reputações") (2000).
2
O significado do "tempo da política" para a ordenação da vida social
foi analisado por Palmeira e Herédia (1993).
3
O lado formal da atividade parlamentar tem sido examinado sobretudo por
sociólogos e cientistas políticos. Curiosamente, no entanto, as ações que estão
além dos marcos formais não têm recebido a mesma atenção. Por conseguinte, o
lado efetivo da atuação parlamentar que não coincide com as atribuições
oficiais não tem sido incorporado, por exemplo, às análises efetuadas sobre o
Poder Legislativo ou o exercício da representação parlamentar.
4
A literatura sobre patronagem e clientelismo é extensa. Para uma idéia a
respeito das discussões sobre os dois conceitos e análises efetuadas consultar,
entre outros, os textos reunidos em Gellner e Waterbury (1977), Schmidt (1977),
Strickon e Greenfield (1972), Roniger e Guner-Ayata (1994). No Brasil, menos do
que como categoria analítica, o termo clientelismo tem sido utilizado por
políticos e profissionais da imprensa com um sentido pejorativo. Servem para
caracterizar, em virtude de uma certa influência das teorias modernizantes,
certas práticas políticas como "atrasadas", "tradicionais"
e/ou "oligárquicas". Para uma análise sobre a introdução e utilização
de conceitos como mandonismo, coronelismo, clientelismo, feudalismo e
patrimonialismo no Brasil consultem-se Carvalho (1997) e Banck (1999).
5
As evidências empíricas utilizadas ao longo do trabalho originam-se de
diferentes fontes (Comissões Parlamentares de Inquérito, entrevistas, jornais e
observações) e foram reunidas sobretudo a partir de pesquisas feitas no
Congresso Nacional, no período de maio a julho de 1996, que resultou em Bezerra
(1999), e em municípios do interior do Estado do Rio de Janeiro, ao longo de
1999. Versões iniciais deste texto foram apresentadas no V Congresso
Internacional da BRASA (Recife, 18-21 de junho de 2000) e na Semaine
Brésil 2000, échanges scientifiques et coopération franco-brésilienne
(Paris, 16-20 de outubro de 2000). Agradeço a todos os participantes os
comentários efetuados às versões apresentadas.
6
Concebidos para se articularem entre si, esses instrumentos, no entanto,
distinguem-se, entre outros aspectos, quanto às suas funções, ao tempo de
vigência, ao detalhe do planejamento e aos prazos e trâmites de suas
elaborações. O PPA foi concebido para viabilizar o planejamento das ações governamentais
no prazo de (04) quatro anos. O PPA é a referência a partir da qual devem ser
elaboradas tanto a LDO quanto a LOA. A LDO define que parcela das metas
estabelecidas no PPA será realizada ao longo de um ano. Ela tem sido
interpretada como o elemento de ligação entre o PPA e a LOA. À esta última cabe
o detalhamento da programação de um exercício financeiro de acordo com as
prioridades e metas estabelecidas pelos dois outros instrumentos.
7
Alguns parlamentares, no entanto, através de negociações com representantes do
governo, conseguiam assegurar recursos para serem aplicados segundo seus
interesses.
8
Na Lei Orçamentária para o ano de 2001 essa cota foi de 2 milhões de reais.
9
Ver, por exemplo, a discussão de S. Silverman (1977) sobre a patronagem pública
e as discussões e de P. Veyne (1976) sobre o "évergétisme" (os dons
de um indivíduo à coletividade).
10
A importância das relações pessoais, sobretudo com os hierarquicamente
superiores, como uma forma de demonstração de poder social no Brasil é
acentuada, entre outros, por Da Matta (1983). Lembro também que a ligação com
as autoridades governamentais tem um lugar central nas análises desenvolvidas
por Graham (1997).
11
Em um momento no qual procurava, ao mesmo tempo, obter "ajudas" para
o seu município e definir sua nova filiação partidária, o prefeito de um
município do Estado do Rio de Janeiro observa que nas várias conversas tidas
com lideranças partidárias do Estado o convite para se filiar aos respectivos
partidos era freqüente e uma espécie de condição para obter a
"ajuda": "Eles [os deputados] só ajudarão com muita ênfase se
estiver no mesmo partido. Isso aí não tem dúvida".
12
Os nomes dos municípios são fictícios.
13
É nesse contexto de preocupação com a obtenção de benefícios para o Estado e a
busca de pessoas que tenham influência, em função de vínculos partidários, de
conhecimento e outros, nos órgãos governamentais que se deve entender o
convite, que gerou um grande constrangimento para a direção do Partido dos
Trabalhadores, do governador do Mato Grosso do Sul (PT) para que um ex-deputado
do PFL cuidasse dos interesses do Estado em Brasília. Ao
justificar a medida, que acabou não se concretizando, o governador explicou:
"Temos que fugir do cerco que o PMDB está fazendo ao governo do Estado.
Ter um grande interlocutor em Brasília para nós é importante" (jornal O
Globo, 28/03/2001, p. 8).
14
Se o conhecimento de pessoas nos órgãos governamentais é algo valorado, isto
ocorre, notadamente, porque a mobilização das mesmas é capaz de introduzir uma
forma de particularismo no tratamento de seus interesses. Como notam, entre
outros, Mény (1992), a introdução desses particularismos nega, por exemplo,
princípios associados à burocracia (racionalidade, universalidade, etc.) e à
democracia (igualdade nas oportunidades e transparência) ao garantir o acesso
privilegiado e secreto de determinados agentes aos recursos públicos. Sobre o
lugar das relações pessoais na administração federal ver Bezerra (1995, 1999).
15
Lembro a esse respeito matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo,
em sua edição do dia 28 de novembro de 1999, na qual são descritos esquemas de
falsificação de notas fiscais montados por grupos especializados. A partir de
informações fornecidas pelo Tribunal de Contas da União, a matéria mostra que
as notas são vendidas para prefeituras que as utilizam, por exemplo, para
justificar os gastos de recursos federais repassados aos municípios.
16
Cabe observar de passagem que os debates públicos no Brasil sobre o fenômeno da
corrupção têm privilegiado a sua dimensão individual e, por conseguinte,
tratado a corrupção notadamente como um problema de desvio ético. Pouco se tem
refletido, no entanto, a respeito do vínculo dessas práticas com as relações e
práticas políticas e administrativas através das quais se faz legitimamente a
política. Para uma análise específica a respeito do modo como a atuação de
parlamentares, referida a uma espécie de ética fundada na ligação às bases, está
relacionada com a questão da corrupção, consulte-se Bezerra (1999, 2000).
17
O cultivo de boas relações com os notáveis locais, como caminho para ascensão
política é ressaltado, entre outros, por Finley (1985) e Weber (1982). Para o
caso do Brasil ver, entre outros, Graham (1997) e Leal (1975), respectivamente,
para o Império e a Primeira República. Como sugere o primeiro ao discutir o
significado das eleições, "a medida de um homem dependia do tamanho de seu
grupo de seguidores" (Graham, 1997, p. 112).
18
A concessão de apoio político em função da obtenção de recursos ou apoios
(políticos e financeiros) futuros parecem estar de acordo com princípios éticos
que regulam a relação entre políticos situados nas instâncias municipais e
nacionais. Julgamentos negativos são dirigidos, no entanto, para as práticas de
"compra de voto", ou, para ser mais preciso, a obtenção de apoio
político de vereadores e prefeitos através de pagamentos pecuniários.
19
A fragilidade dos interesses "puramente materiais" como fundamento
para a dominação é destacado por M. Weber ao discutir o tipo de dominação.
Referindo-se à natureza dos motivos (costume, afetivos, materiais, ideais,
etc.) que define o tipo de dominação, este autor observa que, "motivos puramente
materiales y racionales con arreglo a fines como vínculo entre el imperante y
su cuadro implican aquí, como en todas partes, una relación relativamente
frágil" (1984, p. 170).
20
O encaminhamento de pedidos aos órgãos ministeriais é uma função historicamente
associada ao desempenho do cargo. Analisando as correspondências recebidas por
membros dos Gabinetes onde constam solicitações de nomeações, R. Graham - para
ficarmos apenas em um exemplo-- observa que "os mais freqüentes autores
desses pedidos eram deputados e senadores que escreviam a membros de Gabinete
em favor de terceiros. Escrever tais cartas era uma das principais atividades
de um deputado" (1997, p. 272).
21
Ver, entre outros, Silverman (1977) e Boissevain (1966).
22
Essa preocupação com o conhecimento do posicionamento dos parlamentares pode
ser uma das razões que levaram à violação do painel de votação do Senado
Federal no caso da cassação do mandato do senador Luis Estevão.
23
Quanto a esse aspecto, observe-se o comentário de um ex-assessor de um
ministro: "Depende [o resultado dos pedidos] do prestígio que o
parlamentar tenha junto ao Ministro. São relações diferentes que cada um mantém
com determinados Ministros. Por exemplo, vamos supor que o meu atual chefe
tenha mais contato com o Ministro do Planejamento, então, ele tem mais
facilidade de liberar lá, ao passo que em outro Ministério,
apesar de ter mais recursos, o atual Ministro seja um inimigo político ou coisa
do tipo. Então, [o resultado] não é homogêneo".
24
Nesse sentido, observe-se o depoimento do deputado Paulo Bernardo (PT-PR):
"A pressão em cima dos parlamentares para conseguir recursos no orçamento
existe [...]. Isso existe. Parlamentar que não consegue se articular aqui para
conseguir alguma coisa, ele praticamente não existe, porque do ponto de vista
lá das paróquias, vamos chamar assim, ele não está fazendo nada" (apud
Novaes, 1994, p. 103).
25
Referindo-se ao Brasil e às eleições no do século XIX, R. Graham aponta para a
questão da introdução do sistema representativo no Brasil ao observar, por
exemplo, que "o governo representativo não era uma herança dos tempos
coloniais, mas uma exótica ideologia importada; e os princípios democráticos
não se ajustavam à estratificada sociedade brasileira, [...]" (1997, p.
105). Baseado em dados recentes sobre como o voto é percebido por populações
rurais, M. Palmeira observa - chamando atenção para o modo como este é objeto
de uma apropriação histórico-cultural particular - que nessas circunstâncias o
voto tem o "significado de uma adesão". Assim, "para o eleitor,
o que está em pauta em uma eleição não é escolher representantes, mas situar-se
de um lado da sociedade" (1992, p. 27).